Ato 1 – Prelúdio
Um pai viúvo sofre de um raro tipo de esquizofrenia, o mesmo controlado por medicamentos pesados.
Suas duas filhas, devastadas pela súbita perda da mãe, são propositalmente alheias ao problema do pai, que parece ser totalmente dedicado a sua prole, desprezando o infeliz destino de sua também mentalmente instável esposa.
Noite após noite, desconexos fragmentos de nefastas memórias habitavam seus pesadelos, ao lado de vultos de figuras e seres além do alcance de sua compreensão.
Na noite de 10 de Outubro de 2006, o desespero reinava soberano e incostestado sob a mente deste homem.
Figuras e seres que unicamente habitavam seus sonhos mais nefastos, agora estavam, de alguma forma, vivos. Respirando. Sua presença, inquestionável.
Repentino e opressor, o ar se torna gélido, enquanto uma inexplicável e fina camada de gelo acinzentado cobre as janelas, em ritmo sádico. O mesmo se torna irrespirável. As luzes começam a falhar freneticamente alternando seu brilho, até que o mesmo se esvaísse completamente. O escuro profundo apodera-se de tudo. Toda a casa parecia suspensa em nuvens de horror liquefeito, e olhos forjados em puro mal emergiam das paredes, todavia, invisíveis.
Sussuros e passos podiam ser claramente ouvidos através das paredes de madeira oca, como se cada indistinguível palavra fosse dita ao pé do ouvido.
A porta de entrada da residência se desfaz em um violento ataque.
Sua alma parecia ter sido suspensa no mais negro vazio. Seu corpo, submisso, seguiu.
A desolação de uma presença imersa em escuridão oblitera seus sentidos, um a um, poupando-lhe somente a visão, que viria a descobrir segundos depois, de forma proposital.
Suas filhas estavam em perigo… suas vidas, mais preciosas que qualquer tesouro mundano, ameaçadas.
Porém, suas mãos e pernas estavam presas por invísíveis correntes feitas de um medo imensurável. Seu corpo, era agora seu cativeiro.
A realidade se desfaz em mil farpas, e a batalha entre o desconhecido e sua própria definição do que era real, tem início.
O grande e misericordioso Deus, no qual acreditava incondicionalmente até esse derradeiro episódio, já não mais os podiam alcançar. Se já houve tal entidade onisciente olhando pelos mortais que aqui jazem, vivos ou mortos, nem O próprio seria capaz de realocar tantos fragmentos de loucura nos trilhos da racionalidade novamente.
Nada era certo… nada e tudo… indistinguíveis… diante de seus poupados olhos, se tornam um.
Ato 2 – A Visita
É Abril de 2001, dia 15, Domingo.
A luz do sol me cega por um segundo. Rebecca abre todas as janelas de nosso quarto, e insiste que eu acorde. Eu brevemente olho meu relógio… 07:03 da manhã. Eu não queria sair da cama. Um semana de cão no trabalho… severas e longas dores de cabeça sem explicação… Noites mal dormidas, sem um mísero sinal de relaxamento. Eu estava me sentindo um lixo. Eu só queria descansar, e fazer absolutamente nada por um tempo. Eu merecia isso.
Mas como poderia resistir a qualquer pedido ou desejo vindo de um sorriso tão lindo quanto o de Rebecca. Ao longo de seis anos juntos, dizer “não” a ela era uma tarefa digna de Hércules, e executada com baixíssimas taxas de sucesso. Para ser honesto, não me recordo claramente se algum “não” chegou a funcionar. E o mais engraçado, é que eu não dava a mínima.
Me levanto da cama, direto para um banho frio. Ele parece levar embora minhas preocupações com as correntes gotas de cristal líquido, uma a uma. A sensação é boa… e me sentir bem assim era raro luxo nesses tempos, razão pela qual aproveitei-a ao máximo.
Logo após, coloco minhas roupas, e me recordo do que me aguarda em poucas horas… Dr. Henry Stansfield. Um dos mais renomados psiquiatras de todos o país. A mera lembrança dos honorários da visita ao seu consultório tinham o incrível poder de me deixar furioso até os ossos. Eu podia comprar três TVs gigantes para a casa somente por poder tê-las, com o mesmo valor… mas era minha última tentativa. O último Ás de Espadas na manga…
Nossa segunda filha, Marie, estava à caminho da escola, junto a sua irmã mais velha, Sophie, que terminava seu café da manhã. Ambas me dão beijos e se despedem em direção ao clássico ônibus amarelo. A raiva e as TVs se esvaem de meus pensamentos. Eu fazia isso por elas. Eu já não podia me dar ao luxo de me esconder atrás de frascos amarelos e pílulas mágicas. Meu demônios tinham que ser encarados, e aquele era o dia para tal.
Nada importava mais que manter a unidade da família.
Rebbeca me recorda o quão longe de nossa casa fica o consultório… corremos para o carro e apressamos a partida para evitar custos extras pelo atraso. Ela dirige.
Por dentro, sentia como se estivesse andando minha própria milha verde. Era apenas uma visita ao médico, mas a ansiedade e dor excruciante em cada junta de ossos do meu corpo se recusavam a absorver o fato.
Eu não a deixo perceber nada. Eu aumento o som do rádio, e lhe dou um sorrio enquanto uma de minhas músicas preferidas disfarçam uma mera fagulha de minha angústia… sempre admirei o poder da música sobre a mente. Mágico, mas pouco eficiente em meu caso.
Agora estamos no estacionamento. Minha frequência cardíaca vai de assustadora para Mach 3 em um segundo. Suor frio pinga de minha sombrancelhas e queixo, às bicas. Rebecca enxerga um belo prédio, ornamentado ao melhor estilo renascentista, enquanto eu vejo a forca, onde muitos encontraram seu fim ao som de uma audiência ensandecida… e ao topo desse pódio de horror, o Carrasco, sorrindo.
Aguardamos poucos momentos em uma recepção tão bem ornamentada quanto a fachada, e então, meu nome é proferido ao vento. Chegou a hora
Adentro o consultório, e cumprimento o Doutor. Apesar do ameno sorriso em seu rosto, eu podia sentir seus olhos já trabalhando arduamente: analisando, medindo, e procurando por sinais que nem eu mesmo tinha certeza do que seriam.
Eu agora suava como uma cachoeira, sufocando naquela masmorra claustrofóbica. Rebbeca me extende um lenço, e um olhar sereno. Devo dizer que apenas o lenço fora realmente útil.
Deixo que ela dê início a conversa, uma vez que meu perfil psicológico impresso estava em sua bolsa. Após uma breve troca de palavras às quais não prestei nenhuma atenção, ela o entrega a ele. O grande relógio atrás da pomposa cadeira do profissional parece correr ao revés. Cada segundo encarando seus ponteiros e as opacas parades ao seu redor pareciam uma vida na Terra.
Sadicamente, Stansfield passa página a página do documento vagarosamente. De tempo em tempo, sinto seus olhos me atravessando como lança atirada contra um véu de seda. Como contramedida, me focava totalmente em minhas mãos ao redor das de Rebecca… quanto mais ela se esforçava em me confortar, mais eu queria que a tortura acabesse, e me deixassem ir.
Finalmente, ele olha diretamente em meus olhos, e a inquisição tem seu início. Respondo cada questão rapidamente, para acabar com aquilo o mais rapido possível. Sua voz se cala por alguns segundos, and ainda, seus olhos permanecem sobre mim, como um obcecado Beholder ao controle de seu mestre, tentando encontrar respostas para perguntas ainda não feitas.
Meu disfarce de paz e tranquilidade começa a trincar feito fino vidro ao toque de um dedo. O cara era bom, tenho que admitir. Sua fama não o seguia em vão.
Minhas mãos tremiam, enquanto ele se erguia por detrás de sua mesa de puro mogno, em minha direção. Ele sentou-se sob a mesa, ao meu lado, olhando em meus olhos com um vago sorriso, que eu não sabia distinguir se transparecia prazer, ou simples curiosidade.
“Sr. Phillips, o senhor têm tido algum tipo de ilusão de ótica, sonhos vívidos em plena luz do dia, ou alucinações nos últimos tempos?” – perguntou Stansfield, calmamente, e absolutamente à prova de mentiras. Seus olhos estavam fixados aos meus de uma forma que eu jamais vira. A experiência beirava a hipnose.
Eu podia jurar que ele podia olhar através de minha forma física. Dentro de minha própria alma. Me senti um rato acuado em um canto, como nos desenhos animados… mas para meu azar, sem um martelo gigante com o qual pudesse me defender de meu perseguidor.
Mentir não era uma opção. Enfim… eu tinha que dizer a verdade… mas não em sua totalidade… caso contrário, eu certamente passaria o resto de meus dias em um sanatório, sendo extremamente otimista…
Eu respiro profundamente… e começo a falar.
Por Thiago M. Ribeiro